sábado, 12 de dezembro de 2009

A Venda Da Casa

Outro dia fui almoçar a convite de um grande amigo de infância na velha padaria do bairro. Durante o almoço, meu amigo começou a contar sobre o processo de venda da casa onde morou com sua família na infância, demonstrando certo cansaço mental.

Órfão de mãe e agora de pai, meu amigo juntamente com seus irmãos colocaram a venda o tal imóvel, e eis que ele com sua impetuosidade e dinâmica, acabou assumindo a posição de intermediar a venda.Difícil na verdade estava intermediar as negociações entre os irmãos.

Daí nosso almoço partiu para a discussão desta difícil relação entre pessoas vindas de uma mesma barriga.No inicio se fez a luz.....e nasceu um bebê tão aguardado por um monte de gente eufórica e entusiasmada com sua chegada, fazendo sons estranhos e caretas em volta deste pequeno ser que ainda não percebe o mundo como algo diferente dele, pelo contrário, o percebe como sua extensão, sendo tudo a sua volta uma única coisa: Ele!Logo, entra em cena a figura mais importante da sua vida: A mãe! Aquela que alimenta, protege, dá amor, etc, tornando-se seu universo, ou seja, tudo aquilo de que necessita.

Num próximo momento, o bebezinho começa a perceber e distinguir o mundo a sua volta. Este já não é uma extensão do seu próprio corpo, mas sim, criado para servi-lo. Logo, a mãe, bem como tudo a sua volta torna-se posse sua. Todo amor do mundo, toda atenção, lhe pertence.

O bebezinho torna-se o centro de seu próprio universo. Até ai, tudo corre perfeitamente bem dentro do processo de desenvolvimento do ser. Todos nós passamos por este período que chamamos de narcísico, evoluindo em seguida para novas etapas.

Freud escreveu sobre este processo em seu trabalho de nome “Sua majestade o bebê”. Particularmente, acho que este titulo traduz muito bem este estádio em que todos nós passamos, sendo absolutamente normal e necessário ao desenvolvimento do ser.

Claro que nem tudo é tão simples assim, e algumas pessoas acabam por se fixar neste estádio, desejando ser eternas majestades bebês.Imagine você bebê, neste período, detentor de todo o amor da mamãe, a atenção dos familiares, o carinho do papai, enfim, onde você exerce sua função de majestade o bebê, e de repente, do nada, a barriga da mamãe começa a ficar grande, surge um papo sobre cegonha e tudo o mais, e algum tempo depois, eis que para seu espanto, um novo ser surge dentro do seu reino.

Para piorar a situação, este ser é trazido para dentro do seu reino carregado pelos braços daquela que lhe deveria servi-lo exclusivamente. TRAIÇÃO!Surge um sentimento de traição por parte da mãe tão querida e agora tão odiada. INVASÃO! – O novo ser parece querer se apossar de tudo aquilo que até então era meu!meu!somente meu! Minha mãe, meus brinquedos, meu quarto, meu bercinho, até mesmo aquela tia chata que vive me apertando as bochechas e que também era minha.

O mundo começa a ser dividido. Para piorar tudo, ainda sou obrigado a amá-lo.Passado o susto, aos poucos o bebê percebe que sua adorada e odiada mãe continua lhe dando atenção, amor, carinho, não mais como antes, porém continua presente.

Agora é preciso adaptar-se a uma triste realidade. Eu não sou mais o centro do universo! O amor da mamãe é dividido entre os irmãos, bem como o carinho do papai.

O mundo é dividido entre os irmãos. Um reino foi dividido. Mas eis que surge um sentimento que promete um retorno seu a este reinado perdido: “Vou provar que sou melhor do que este ladrãozinho barato, e terei meu reino de volta!” - Começa então aquilo que conhecemos por competição.E nesta guerra cuja disputa é somente o universo, algo vem para amainar os ânimos, apaziguar as agressividades.

O amor materno.Graças a Deus o amor de mãe é imenso, não deixando nenhum de seus filhos se sentirem desamparados. De vez em quando, a balança pode pender para o lado de um, ou do outro, mas lá vem a mãezonha, trazendo a macarronada naqueles almoços dominicais, com sua sabedoria e paciência, e haja paciência, para equilibrar a balança, fazendo todos se sentirem amados e queridos.

Geralmente, quando tudo dá certo, irmãos se relacionam bem. Podem até mesmo não ser amigos do peito, mas se respeitam e se gostam como irmãos.Aliás, amigo é amigo. Irmão é irmão. Irmão pode ser amigo. Amigo pode ser irmão.

Contudo, um sentimento de competição segue guardado inconscientemente entre aqueles que um dia disputaram e ainda disputam por um reino perdido.

Esta disputa pode continuar ao longo de uma vida, brigando pelo melhor emprego, a atenção de amigos em comum, atenção dos pais, o melhor carro, a melhor roupa, o melhor marido, a melhor esposa, o melhor time, que vença o melhor, etc.A competição se expande entre amigos, chefes, colegas, esposas, enfim, e procuro afastar de mim qualquer coisa que represente uma ameaça.
A ameaça de perceber que eu não sou o centro do universo. A ameaça de perceber que ser detentor do poder é uma ilusão.Mas podemos carregar para sempre esta sensação interna.
A necessidade de competir. Reclamar por um reino um dia perdido.O difícil é perceber que tudo não passa de uma fantasia interna.Não existe reino nenhum. Todos nós somos seres idênticos. Não existe super homem, nem mulher maravilha. Querer ser superior é algo fantasioso. Superior a quem?Dono do mundo, dono do amor materno, dono do poder.

Tudo isso não passa de fantasia narcísica.Neste ponto, o caçula é aquele que já nasce levando patada do outro por apontar uma desilusão narcísica. De cara, ao nascer, mostra ao outro que tudo aquilo que um dia acreditou não passa de uma ilusão.

Crescemos, nos tornamos adultos e continuamos com este desejo interno de sermos os melhores, detentores do poder, os maiorais, o mais bonito, o mais astuto e inteligente, o mais amado, etc.Continuamos a disputar com o irmão, com o amigo, com o mundo, utilizando ferramentas diversas: títulos, MBA, times de futebol, competições esportivas, etc.

Cada vez que meu time ganha do outro, vem a satisfação do vencer. Vencer algo ou alguém.
O importante é vencer! Eu venço através do futebol, dos títulos, da namorada, do carro, dos amigos, do salário, venço, venço, venço, venço. Infelizmente vivemos um momento narcísico tão grande em nossa sociedade que podemos observar a nova geração ser preparada para lutar e vencer. Vencer o que mesmo? Ah, vencer na vida! A ilusão é coletiva.

Triste é perceber o quanto de nossas vidas nos dedicamos a uma luta que somente existe em nossa cabeça. Vivenciamos situações que geram angustias e que não são reais. Morremos muitas vezes por uma fantasia, e muitas vezes somente percebemos isso no final do caminho.

Doce ilusão.

Não existe o tal reino perdido.

Quanta paulada eu dei e também tomei para ter um poder que nunca existiu. E a mãe.....continua a sorrir, percebendo isso tudo. Procura dar um abraço em cada filho aguardando o dia em que também perceberão.Viva as mães e as macarronadas no domingo.Irmão é irmão. Pode ser amigo. Pode ser irmão. Pode ser amigo irmão.

Sergio Rossoni é Psicanalista e colaborador dos sites “nossa dica’ e “apsicanalise”.
Atende em São Paulo (Moema/ Vila Mariana)Contato: (11) 8339 5683e-mail: sergio.rossoni@hotmail.com
http://www.sergiorossoni.com/
http://www.apsicanalise.com/

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Quem saberia perder?

Gostaria de falar um pouco sobre algo que nos acompanha ao longo de toda nossa vida. Trata-se da fantasia e conseqüentemente da frustração!

Antes, porém, gostaria de esclarecer que a fantasia à que me refiro é a fantasia inconsciente presente em cada um de nós. Roteiro imaginário em que o sujeito está presente e que representa, de modo mais ou menos deformado pelos processos defensivos, a realização de um desejo e, em última análise, de um desejo inconsciente. (Dicionário de Psicanálise – Laplanche e Pontalis).

Fantasia é o MEU desejo de que tudo na vida aconteça da forma como EU quero!

Pronto. Já podemos ter uma boa noção do que chamamos de fantasia.

Até aqui você pode estar concluindo que fantasia é algo ruim, e devemos então exterminá-la de nossa existência e pronto, tudo resolvido!

Negativo!

A fantasia pode ser entendida como uma espécie de defesa, cujo objetivo é dar conta de uma ruptura ética em nosso desenvolvimento, ou seja, uma defesa contra nossas ansiedades.

Ansiedades estas que têm início ao nascer.

Imaginem um bebê, quentinho e protegido no útero da mãe, recebendo alimento, contando com a presença desta que lhe carrega em seu ventre todo o tempo, desenvolvendo-se dentro do que imaginamos ser uma sensação de plenitude, etc.

De repente, escorrega por entre as pernas da mãe em direção ao mundo externo, arrancado do seu mundo quentinho e protegido, passando a sentir estranhas sensações corpóreas e desconhecidas como frio, fome, sede, despertando incertezas e medos que serão confirmados ou não, pela forma como o seu meio ambiente se apresentar.
Bem vindo à vida real!

De qualquer forma, algo é sentido como perdido. Aquela sensação perfeita, longe das intempéries da vida real foi perdida.

Aquela plenitude uterina....Nunca mais!

O mundo real se apresenta cheio de obstáculos, conflitos, frustrações, gerando medos e angustias, totalmente contrário do mundo outrora vivido sem nada disso, agora desejado e fantasiado.

É preciso fazer alguma coisa com estas sensações de medo e insegurança trazidas pela realidade.
Um dos dois princípios que regem o funcionamento mental, segundo Freud, é o principio do prazer. Contrário do principio de realidade que aponta para a vida real, a atividade psíquica tem por objetivo evitar o desprazer e proporcionar o prazer.

Através de algo chamado recalque, tais ansiedades permanecerão escondidas no inconsciente, longe de nossa percepção consciente.

Mecanismos de defesas como onipotência, cisão, idealização, negação, são criados pelo aparelho psíquico para garantir que tais desprazeres mantenham-se afastados.

São estes mecanismos que nos garantem a ilusão de poder controlar o processo da vida, mantendo as frustrações afastadas, ou simplesmente negando-as, ou ainda idealizando grandes objetos que nos garantam a segurança. Processos estes cuja utilidade é tornar a realidade suportável.

Assim, vivemos protegidos por armaduras rígidas, que nos protegem no combate diário contra o senhor desprazer.

Logo, passamos a viver uma realidade, recheada por fantasias que amenizam a dureza da vida.
Começamos a entender que o conceito de realidade é singular para cada ser vivo. Único.
Eu percebo a minha realidade através das minhas fantasias.

Viver somente na realidade seria algo impossível. As fantasias tornam o viver mais ameno, satisfatório.

Fantasiar é sonhar.

E sonhar, é necessário.

Sonhar é o analgésico da vida.

O desejo de realizar um sonho faz o ser evoluir em vários aspectos.

O ser humano não se mantém na realidade sem o apoio dos sonhos e esperanças, ou melhor, dos desejos.

Até aí tudo certo. Muitos sonhos e desejos devem ser realizados, afinal, são eles que nos impulsionam na direção da criatividade, proporcionando evolução, desenvolvimento, crescimento, etc.

No entanto, existe dentro de cada um, inconscientemente, o desejo de realização de um sonho maior.

Alcançar a plenitude! Aquela, outrora perdida.

O retorno ao estado pleno onde não exista a dor, a frustração, a fome, etc. Um estado somente de realizações e segurança.

A mesma segurança sentida um dia no útero materno. Um mundo pronto para atender a todas as demandas do ser.

Assim, eu passo a desejar que o mundo real atenda a estas demandas: um mundo pronto para me servir, me reconhecer, me agradar, me acolher, onde tudo TEM QUE SER DO JEITO QUE EU QUERO!

Este desejo torna-se o grande sonho.

Não um sonho qualquer, mas o sonho.

A realização de todos os meus problemas.

Sem ele, eu estarei no limbo da vida cruel e ordinária. Com ele, estarei na plenitude.
Na busca por este ideal inconsciente, ocorrerá um deslocamento para objetos e situações diversas, onde a plenitude ou esta sensação maior será agora sentida através da realização ou conquista de algo, que me faça sentir mesmo que temporariamente, vivendo em um mundo pleno.

É como se estes objetos agora denominados de objetos bons, garantissem certa segurança inconsciente diante das intempéries da vida.

Assim, por exemplo, um carro importado, um cargo alto na empresa, qualificações, MBA, etc, etc, etc, podem representar a plenitude, tornando-se um objeto bom, necessário para que certas pessoas sintam-se plenas, reforçando a fantasia de segurança e poder diante dos medos internos.

Até mesmo a escolha de uma profissão, pode vir junto com a promessa de uma vida plena.

Para piorar, pode vir mediante a fantasia do outro, projetada em cada um de nós.

Um médico certa vez virou-se para mim e disse: “Cheguei à conclusão de que me tornei médico, porque este era o desejo do meu pai”. Além de criarmos nossas fantasias, ainda somos bombardeados pela fantasia do outro, ou seja, neste caso, o desejo do pai, que muitas vezes vive a sua fantasia realizada através de um filho.

No que tange aos relacionamentos amorosos, verificamos verdadeiros desastres regidos pela não compatibilidade entre as fantasias de cada um, uma vez que o parceiro(a), é aquele que deverá assumir a responsabilidade de levar o outro ao estado pleno, correspondendo ao desejo inconsciente.

É bastante comum escutarmos comentários como: “Quando nos casamos, ele era outra pessoa. Agora, tudo acabou”.

Muitas vezes, nos casamos com nossas fantasias, sem perceber de fato o ser real por detrás daquele véu ilusório que criamos. É o chamado “sonho de princesa ou príncipe”, casar-se com um ser que nos ame, nos mantenha longe dos perigos reais e imaginários, nos assegure felicidade e riquezas, filhos, etc, etc, etc. No entanto, quando a fantasia vai dando lugar para a realidade, e o príncipe deixa sua capa e cavalo branco de lado, tornando-se um ser humano real, o conto de fadas tende a acabar. O parceiro até então escolhido não é mais sentido como aquele que seria capaz de resolver o problema interno do outro. Daí, pessoas partem para uma nova tentativa de realizar este desejo, este sonho. Surge um novo parceiro, e com ele, a promessa de que desta vez, vai dar TUDO CERTO DA FORMA COMO EU QUERO!

Citando outro exemplo, quem nunca vibrou aguardando uma festa tão desejada, e depois de sua realização sentiu uma pontada de decepção? Claro, na imaginação, a festa sempre é perfeita, com a paquera perfeita, com todos os amigos desejados, etc. Na fantasia, a festa já aconteceu plena, perfeita. Na realidade, basta aquele amigo faltar na festa para causar uma ponta de decepção, dizendo: Achei que seria mais legal! Não foi como havia imaginado!

Viver somente na fantasia é frustrante, pois nos impede de curtir o real, da forma como se apresenta diante de cada um de nós.

Recentemente, estava eu quase fechando negócio na compra de um imóvel, no bairro que sempre morei, na rua desejada, no andar perfeito, com a vista maravilhosa.

Infelizmente, não deu certo.

Entrei numa pequena depressão, e precisei da ajuda do meu analista para entender que estava vivendo na fantasia.

Era como se a cidade de São Paulo se resumisse somente ao bairro desejado.

Naquele momento, tinha a certeza de que não seria feliz em nenhum outro lugar.

Outros imóveis deixavam de existir, sendo aquele apartamento, sinônimo de felicidade e realização plena.

De repente, tudo que já havia feito, até mesmo a reforma do imóvel (na minha imaginação), havia ido pro buraco.

O sonho havia acabado num simples telefonema.

Trabalhando com meu analista, percebi que aquele bairro, onde por sinal cresci, bem como aquele apartamento, representavam muito mais do que imaginava.

Representavam um sonho.

Aquele sonho de alcançar a situação plena, onde tudo estaria resolvido na minha vida inconsciente.

Um resgate ao meu passado, revivendo minha infância no hoje.

O apartamento, não era só um apartamento. Era o sonho que precisei dar conta no final.

Foi preciso jogá-lo fora, pois na real, ele não traria de volta a sensação da plenitude, buscada na infância, na adolescência, e hoje na fase adulta.

Após viver o luto do sonho jogado fora, o apartamento passou a ser somente um bom apartamento num bairro muito legal. Mas foi preciso um certo trabalho para dar conta disso.

Jogar um sonho fora e viver seu luto é algo doloroso.

Daí, nossas frustrações.

A plenitude não existe!

Muitas vezes quando não realizamos nossos desejos, não obtemos o carro, a casa, o cargo desejado, sentimos um imenso vazio, como se o grande sonho tivesse sido perdido.

Lembrando que este sonho já foi perdido há muito tempo, somente não nos demos conta.
O objeto bom foi perdido. A fantasia foi perdida. Um projeto foi perdido.

Caímos então na depressão.

Muitas vezes, reagimos com agressividade, carinhas feias, etc, dando verdadeiros showzinhos mimados, cada vez que o mundo não corresponde a nossa fantasia.

Falta de tolerância em lidar com frustrações. E na fantasia, é o mundo que está errado.

Melanie Klein denominou o estagio do desenvolvimento do ser, onde aprendemos a lidar com a perda deste “sonho” como posição depressiva. Neste estágio, aprendemos a tolerar as frustrações, a perda, vivenciar o luto, assumir responsabilidades diante da vida, lidar com sentimentos de culpa e desejo de reparação. No entanto, a passagem por esta posição nunca é devidamente concluída por nós.

Assistimos diariamente homens e mulheres serem lançados à depressão por não saberem lidar com suas perdas.

A vida não necessariamente se ajustará aos seus desejos da forma como você fantasiou!

Para encerrar, lembrei-me de uma música linda chamada “Quem saberia perder”, composta e cantada pela dupla Sá e Guarabira, cujo refrão diz: “Diga quem nunca levanta de noite querendo de volta o perdido”.

Quanto ao apartamento (sonho) que perdi, ainda tenho esperanças de que apareça outro (sonho) a venda naquele mesmo prédio, afinal, a esperança é a última que morre. Porém, ela morre um dia.

No entanto, como nossos queridos poetas cantam: Quem saberia perder?

Sergio Rossoni é Psicanalista, Musico e Escritor, colaborador dos sites “nossa dica’ e “apsicanalise”.
Atende em São Paulo (Moema/ Vila Mariana)
Contato: (11) 8339 5683
e-mail: sergio.rossoni@hotmail.com
http://www.sergiorossoni.com
http://www.apsicanalise.com/

A Volta Ao Passado Via Cabo

Confesso que sou um viciado em tv.

Para mim, um dos momentos mais relaxantes do dia ou da noite, é aquele em que pego o controle remoto e inicio uma longa jornada começando pelo canal 2, clicando até o 102, a procura de algo interessante, buscando encontrar alguma coisa que me chame a atenção, o que nem sempre acontece.

Aos poucos, tenho descoberto em canais variados, uma programação rica e saudosa, que me leva de volta ao meu passado, resgatando em mim aquela criança pequena que ainda vibra com personagens da tv como Batman e Robin, vestindo aqueles colãs estranhos, escalando prédios de papelão atrás daqueles vilões carismáticos e igualmente engraçados; ou diante do grande e poderoso Ultraseven e Ultraman; revivendo as aventuras dos patrulheiros rodoviários da série “Chips”; desvendando mistérios com o tigrão Magnum, entre outros tantos que fizeram parte da vida de milhares de crianças e jovens da minha geração.

Isso sem contar os desenhos incríveis da Hanna Barbera (Jetsons, Flintstones, Herculóides, Jonhy Quest, etc).

Esta semana num destes passeios televisivos, descobri mais um velho seriado sendo exibido por um novo canal: “A Noviça Voadora”.

Sem pensar duas vezes, liguei imediatamente para uma amiga da minha geração, que assim como eu costumava assisti-lo na época de sua exibição no Brasil.

Imediatamente, ela deixou de lado aquilo que estava assistindo, mudando para o canal que havia lhe falado, ficando então extasiada ao reencontrar depois de tantos anos com sua noviça voadora.
Parecia uma criança diante de um brinquedo, rindo, contando para mim como ela adorava aquele seriado quando era criança, lembrando-se dos velhos tempos, das saudades, etc.

De repente, recuperando o fôlego, disse: “Acho que no fundo, a gente quer mesmo é voltar a ser criança”.

Uma coisa pra se pensar.

Posso estar enganado, mas senti na sua fala uma certa melancolia.

Não que sua infância tivesse sido ruim, muito pelo contrário, mas penso que este reencontro talvez tenha despertado nela, e também em mim, uma saudade, de algo, ou quem sabe, de alguém muito especial.

A saudade de ser criança. A saudade da nossa criança.

Ser criança nos remete a infinitas possibilidades.

É como se pudéssemos retomar aquilo que deu errado e recomeçar tudo de novo.
Recomeçar do zero.

Reviver as primeiras amizades, os namoros, as lições de casa, os cuidados da mãe, as promessas de que tudo dará certo, as aventuras vividas no antigo bairro com os colegas da rua, os campeonatos de futebol de botão jogados na garagem, as paqueras nos bailinhos de escola, etc.

Ser criança. Tempo bom! Um mundo cheio de possibilidades.

Parece que diante de um seriado antigo destes, vivemos um reencontro com tudo isso, trazendo a tona a criança que nunca morre, mas infelizmente, acaba sendo esquecida.

Talvez essa melancolia que acompanha muitas vezes estas lembranças, nos aponte para uma grande perda construída ao longo de uma vida: A perda da capacidade de ser criança!

Ser criança não é ser infantil, mimado, sem responsabilidades. Isso tem outro nome.

Ser criança é deixar uma parte do nosso ser continuar a viver, expressando seus desejos, seus sentimentos, seus sonhos. Uma parte essencial para nossa experiência de vida.

Ser criança é continuar a brincadeira de roda, o bate papo furado. É sonhar. É querer escrever um livro com noventa anos de idade. É perceber que somos todos iguais e que a vida não é tão seria assim. Aliás, a vida é uma grande brincadeira.

Ser criança é retomar o contato com os velhos amigos da banda de garagem que você acreditava que seria um sucesso, e tornar a brincar, juntos outra vez.

Ser criança é deixar fluir o desejo de brincar. É sentir o brilho em nossos olhos ao entrar em uma loja de brinquedos, e se deixar levar pela emoção ao se deparar com o carro do Speedy Racer. É deixar o tempo passar lendo um gibi da turma da Mônica, do Tintin, do Asterix, ou do Tex.

Ser criança é começar a “ser”, deixando de lado o adulto que na maioria das vezes preocupa-se somente com o “fazer”.

Ser criança é a capacidade de viver de forma saudável com nosso lado adulto.

É enxergar cor onde muitas vezes, nosso lado adulto só vê em preto e branco.

É ter esperanças diante da crise.

É sonhar.

Ser criança é essencial para que possamos ser adultos.

Talvez essa melancolia sentida na voz da minha amiga, seja devido à percepção de que algo nela foi perdido. Esquecido. Não o passado. Não os acontecimentos vividos na infância. Algo ainda maior. A sua criança.

Talvez essa sensação de melancolia, este saudosismo que sentimos diante destas lembranças não seja de fato do passado não mais vivido, mas sim daquela criança que continua existindo e implorando para existir dentro de cada um.

A saudade da criança. A tristeza de tê-la perdido em algum lugar, dentro do peito, e o profundo desejo de reencontrá-la.

Não vou voltar a brincar de carrinho como brincava, mas continuo brincando até hoje. Aliás, posso dizer que tenho brincado muito. Brincado de tocar baixo com meus antigos amigos. Brincado de ser Psicanalista. Brincado de ser marido e pai de quatro gatinhos lindos. Brincado de desenhar e escrever. Brincado ao ler meus gibis. Brincado de fazer análise. Brincado, brincado e brincado.

Tenho aprendido cada vez mais a brincar, levando muito a serio cada uma dessas brincadeiras.
Parece que esses seriados antigos têm a capacidade de colocar nosso adulto diante da nossa criança assustada e amedrontada. Sozinha. Esquecida no fundo da alma. No fundo do poço. E assim, diante deste reencontro, um laço é formado novamente. O desejo de ser criança evolui para a percepção de que continuamos a ser criança...Eternamente, com muita seriedade.

Acho muito legal esta possibilidade que encontramos atualmente de reencontrarmos nossos antigos heróis, seja na TV, ou mesmo comprados em boxes de DVD.

Quem sabe este seja um meio para nos reencontrarmos.

Um reencontro com a nossa essência. Nossa historia. Nossos sonhos.

Um reencontro com a nossa criança, que muitas vezes permanece adormecida...para sempre.

Sergio Rossoni é Psicanalista, Músico e Escritor
email: sergio.rossoni@hotmail.com
www.sergiorossoni.com